
A crise e o poder judicial
1. Não são frequentes as referências ao papel do poder judicial no contexto de crise que estamos vivendo, que é em grande parte consequência de erradas políticas eleitoralistas tomadas no ano passado.
A aceleração das medidas que têm sido decididas, do ponto de vista do aparelho do poder público, tem tido como principais destinatários os poderes legislativo e administrativo.
No tocante ao legislador, para além das suas competências específicas em matéria de aprovação de medidas fiscais e financeiras de aumento de receita, foi dado um sinal evidente de exemplaridade, através da redução de cinco por cento das remunerações dos titulares dos cargos políticos.
No caso particular da Assembleia da República, a preocupação com a exemplaridade, de entre outras decisões, chegou ao ponto de as despesas com as viagens oficiais dos deputados até três horas e meia serem apenas custeadas em classe económica, incluindo as viagens para as regiões autónomas.
E espera-se sinceramente que o exemplo igualmente seja dado por parte dos dirigentes parlamentares que não são deputados, que, como é óbvio, não deverão ter mais direitos do que os próprios deputados, submetendo-se aos mesmos critérios de contenção de despesa e, assim, viajar apenas em classe económica...
Do lado do poder administrativo, são inúmeras as providências draconianas aprovadas neste clima de severa austeridade, desde a proibição de novas contratações na administração pública até à redução de salários de gestores públicos.
2. E o poder judicial? A sua máquina também estará submetida aos mesmos critérios? Por que razão do mesmo modo não se fala em redução de vencimentos dos magistrados também? E, então, não há proibição de novas contratações no poder judicial também?
Eis uma importante interrogação, a qual deve ter uma resposta em nome da coerência, da transparência, da universalidade e da igualdade de tratamento dos lugares públicos e dos dinheiros de todos nós.
Não vejo nenhuma razão para olhar o poder judicial como uma "ilha imune à crise", como se os dinheiros públicos nesta matéria fossem especialmente virtuosos no sentido de não justificarem uma redução de custos e a adoção de medidas de austeridade, válidas para todos os outros setores da atividade pública.
De resto, no caso mais trepidante da redução de remunerações públicas, não deixa de ser estranho que se tivesse aprovado a redução de remuneração de todos os titulares de órgãos de soberania e que os juizes - também titulares de órgãos de soberania como são os tribunais - tivessem escapado a essa tónica universalizante dos sacrifícios.
No estrito raciocínio da exemplaridade, a redução dos vencimentos dos magistrados, no poder judicial, é tão boa como a redução dos vencimentos dos cargos ditos políticos, substancialmente equivalentes no conceito constitucional dos órgãos de soberania, que são quatro: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.
3. Mas a implicação da intervenção do poder judicial neste quadro de crise tem de ser mais profunda e ir além da questão simbólica das intocadas remunerações dos juizes e dos procuradores.
Do que se trata é de uma oportunidade de reforma de todo o sistema judicial, submetendo-o a uma análise económica crítica, porventura inédita, até aproveitando o paralelismo de uma revisão constitucional que se avizinha para o curto prazo.
A pergunta que vem logo ao espírito é esta: tem agido o poder judicial numa lógica de redução de custos e de evitação de desperdícios?
Alguns dirão que esta é uma matéria tipicamente legislativa, uma vez que o poder judicial, estando submetido ao Direito, se limita a aplicá-lo, sem margem de discricionariedade, e muito menos uma discricionariedade financeira, monopólio dos parlamentos segundo o velho princípio no taxation without representation.
É verdadeira a existência deste princípio como é verdadeira a natureza essencialmente aplicativa - e não deliberativa - do poder judicial.
Contudo, ninguém hoje pode pensar que os juizes se podem reduzir ao autómato idealizado por Montesquieu, que afirmava, no seu célebre O Espírito das Leis, que "... o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei".
O julgador em Estado Social possui também uma parcela criativa de Direito e por aí passa simultaneamente um mandato de contenção da despesa pública, patente no modo como se preenchem conceitos indeterminados ou como se integram lacunas jurídicas.
Ainda na perspetiva da atuação administrativa dos tribunais, seria interessante perguntar aos órgãos dirigentes das magistraturas que medidas eles próprios já tomaram para reduzir as despesas que dependem das suas próprias decisões.
4. Esta oportunidade de reavaliar as despesas com o poder judicial deve finalmente discutir alguns temas que se tornaram sagrados, mas que o tempo veio a demonstrar terem ficado desprovidos da racionalidade intrínseca às coisas que a todos nós dizem respeito.
Para além do problema mais complexo do eventual excesso de jurisdições, a questão tem sido suscitada ao nível do excessivo número de membros dos órgãos judiciais superiores, perante dois erros que foram cometidos: - ou o erro de não consagrar, na Constituição, um limite máximo de juízes, verificando-se que o tempo se encarregou de engordar, por óbvia pressão corporativa, o número de lugares de juízes conselheiros: é hoje o Supremo Tribunal de Justiça, com cerca de 70 magistrados, um bom exemplo do absurdo a que se chegou, ainda por cima confundindo-se um tribunal supremo com um tribunal de promoção da carreira judicial;
- ou o erro de se ter consagrado um número exagerado de juízes na Constituição, sem qualquer paralelo com outras experiências equivalentes: é o caso do Tribunal Constitucional, no qual os 13 juízes que tem são obviamente de mais não apenas em comparação com outros tribunais constitucionais europeus - com um parecido número de juizes para estados três e quatro vezes maiores que Portugal - como também por nesta altura as grandes questões constitucionais já terem sido decididas, sendo certo que vários bons mecanismos já foram adotados para evitar a banalização do recurso a este tribunal como quarta instância judicial comum.
Eis alguns temas de reflexão para que o poder judicial seja chamado à liça do debate no espaço público, não se julgando imune ao esforço de todos os portugueses na superação da crise económico-financeira que nos aflige.
Jorge Bacelar Gouveia - Professor catedrático de Direito/constitucionalista
Público | Segunda Feira, 19 Julho 2010