
Paula Teixeira da Cruz Ministra da Justiça "O sistema está feito para os crimes prescreverem"
Ali é tudo grande: o tamanho do gabinete na Praça do Comércio, a vista para o Tejo e a vontade da ministra em ler as notas que trouxe para o sofá das visitas e nunca larga durante esta entrevista de duas horas. A advogada Paula Teixeira da Cruz, que conseguiu a paz com os magistrados e comprou uma guerra com os advogados, está decidida a mudar a Justiça. Sim, outra vez.
- Mais de três quartos dos portugueses consideram que as decisões dos tribunais são influenciadas pela política. O que é que a ministra da Justiça pode fazer para mudar esta imagem?
- Os portugueses têm razões para duvidar da Justiça. Temos uma organização judiciária do tempo de D. Maria e regras do tempo de Alberto dos Reis. Estamos a fazer reformas.
- Ouviu o presidente do sindicato dos juizes dizer que o poder político desconfia dos magistrados.
- E ouvi o mesmo presidente dizer que o ambiente é diferente daquele que existiu nos últimos seis anos. Não há reformas contra ninguém.
- É advogada, mas tem melhor relação com juizes e procuradores do que com os advogados.
- Eu não diria com os advogados. O atual bastonário (Marinho Pinto), aquando da minha indigitação, teve uma reação entusiástica. Até que fomos mexer num sistema, o apoio judiciário, que toda a gente sabia que funcionava sem qualquer fiscalização e prestava-se a disfunções. Eu não tenho uma lógica corporativa e tenho a obrigação de corrigir disfunções. E não foi só com os advogados. Também houve problemas graves com agentes de execução.
- A diferença é que há agentes acusados em tribunal. E que se saiba não há nenhum advogado arguido.
- Que se saiba, como diz.
- Quer dizer que apresentou queixa contra algum?
- Não. Estamos a finalizar o relatório e nessa altura serão tomadas as medidas consequentes.
- O relatório sobre indícios de fraudes nos pagamentos do apoio judiciário é assustador?
- Tem números preocupantes. Assim que detetámos as disfunções, chamei cá o bastonário, falámos e no dia seguinte o site da Ordem estava a negro e exigia que o Ministério assumisse uma dívida que nunca tínhamos ouvido reclamar ao anterior governo. E era uma dívida grande, de €32 milhões.
- A dívida é real?
- Não. O Estado deve mais de €32 milhões, mas nunca deixou de pagar. E cresce todos os dias. Porque o sistema funciona assim: o advogado lança os pedidos, a Ordem envia para o Ministério, que paga. E ninguém supervisiona. Em 2008 foi publicada uma portaria que previa a fiscalização, por parte dos magistrados e dos funcionários judiciais, dos atos praticados pelos advogados. Um mês depois, a portaria foi suspensa por acordo entre o bastonário e o Ministério da Justiça e todos os mecanismos de fiscalização caíram. E as remunerações por ato aumentaram. E não é por acaso que após 2008 os encargos com o apoio judiciário sobem em flecha. E para este ano a estimativa é de €6l,5 milhões. Em 2005, eram €46 milhões. Em 2006, €34 milhões. Em 2008, começa a subir: €35,4 milhões. Em 2010 passa para €48,4 milhões. E em 2011 vamos em €50,3 milhões.
- Não quer dizer que seja fraudulento.
- Fizemos uma auditoria, temos relatórios preliminares que mostram um número de desconformidades muito grande entre o número de sessões e de processos fornecido pelos tribunais e os pedidos de pagamento dos advogados. O relatório foi enviado para a Ordem e estamos à espera que nos digam se discordam de alguma coisa. E mais: a Ordem recebe uma percentagem das taxas de justiça nos processos cíveis. Não há mais nenhuma que seja financiada diretamente pelo Estado. Em 2010 foram transferidos €1,7 milhões.
- Vai deixar de transferir o dinheiro?
- Admito rever, porque não me parece correto que o Estado financie um órgão de uma instituição que é suposto ser independente e autónoma.
- Vai haver participações criminais contra advogados?
- Gostaria muito que não houvesse. Mas gostaria mais ainda que fosse feita justiça. E que todas as situações onde encontramos indícios de prática criminal dessem origem a processos criminais. Isto vale para advogados, magistrados. Vale para todos.
- A Ordem vai deixar de gerir o sistema de pagamentos?
- O sistema como está não vai ficar. Mas seria deselegante estar a falar nisso antes de falar com a própria Ordem. Mesmo que não haja reciprocidade na lealdade.
- Como viu a nomeação do deputado Ricardo Rodrigues, acusado de atentado à liberdade de Imprensa, para a direção do Centro de Estudos Judiciários?
-Vi a nomeação com grande tristeza.
- Não a preocupa o facto de as pessoas estarem a ouvir falar, outra vez, de reforma dos códigos penais? Houve uma há dois anos.
- Essa reforma foi feita à medida de um processo e é isso que eu não quero.
- Casa Pia?
- Sim. Mas nós queremos corrigir as irracionalidades do sistema. Ninguém percebe que um arguido possa confessar na presença do advogado, depois decida calar-se no julgamento e as declarações que fez não sirvam para nada.
- Quer dizer que uma confissão feita numa cela da polícia passa a ser válida?
- Não. Tem de ser prestada perante um advogado e um magistrado —juiz de instrução ou procurador. É assim em todo o lado. Uma confissão rodeada de todas as garantias tem de ter algum valor.
- Basta que a confissão seja feita perante um procurador?
- Quando diz basta...
- O procurador representa a acusação. O juiz é o árbitro.
- Mas é para isso que está lá o juiz de instrução que controla o processo antes do julgamento. Outra questão é o número de testemunhas que os arguidos podem apresentar. Tem de haver um limite, dependendo do tipo de processo-crime.
- Concorda que o MP possa negociar com o arguido uma pena?
- Em casos de alta criminalidade não há nada a negociar. Nalguns, de pequena criminalidade, admito que sim.
- Vão continuar os processos com 50 arguidos e 450 testemunhas?
- Vou propor várias possibilidades de conduzir esse tipo de processos. Assim como me parece que nos crimes mais complexos o procurador que faz a acusação tem de representar o MP nos julgamentos. E há ainda a questão das prescrições. Conheço poucos sistemas recomendáveis cuja prescrição corra desde a data do crime, ignorando que houve um julgamento e uma condenação.
- Vai propor que o julgamento interrompa o prazo para o crime prescrever?
- É umas das propostas. Não pode continuar este sistema que parece feito para os crimes prescreverem. Não faz sentido que o recurso para o Tribunal Constitucional possa ter efeito suspensivo. Basta olhar os números e constatar que 90% dos recursos são rejeitados.
- Parece uma reforma feita à medida do caso Isaltino Morais.
- Há muito tempo que os operadores judiciários discutem esta questão, porque as pessoas utilizam o recurso para o Constitucional como expediente.
- As suas medidas vão todas no sentido de tirar direitos aos arguidos.
- Não é verdade. O que quero é impedir que o sistema seja usado de modo a permitir a impunidade. Garantias são uma coisa, expedientes dilatórios outra. E tenho de lamentar que a magistratura não condene por litigância de má-fé quando ela existe.
- Os magistrados também vão continuar a ter todos muito bom e excelente nas avaliações?
- Há um projeto do Conselho Superior de Magistratura que temos de avaliar, mas é óbvio que o sistema tem de ser mais exigente.
- O seu discurso de arrumar a casa entra em contradição com a situação do diretor da PJ que está há meses sem saber o que lhe vai acontecer.
- Não é contraditório. Há leis orgânicas que foram aprovadas e têm de ser aplicadas. Não fazia sentido estar a criar instabilidade nas chefias até à aprovação dessas leis.
- Já no tribunal da Maia — as instalações desagradam aos operadores judiciais e foram alugadas na véspera da tomada de posse deste Governo — continua tudo na mesma.
- Não continua....
- Apresentou queixa-crime?
- Pedi um parecer à Procuradoria, que confirmou as ilegalidades.
- Mas apresentou queixa?
- Eu falei de ilegalidades, não falei de crime. São outras instituições que têm de apurar se houve crime.
- Falou de gestão ruinosa em vários contratos mas ainda não houve demissões...
- Os contratos estão a ser renegociados pelo nosso gabinete, mas estamos à espera da aprovação da lei orgânica para poder arrumar a casa. Renegociámos contratos completamente ruinosos.
- Como por exemplo?
- Ter um despacho do anterior secretário de Estado da Justiça (José Magalhães) a mandar desenvolver o SITAF 2 quando o l nunca funcionou...
- SITAF?
- O sistema informático dos tribunais administrativos e fiscais. E já que me permite falar nisso, gizámos um plano de informação para a Justiça. Está feito. Temos uma série de programas que não funcionam entre si, não interagem.
- Quanto é que custou o SITAF 2?
- Não sei, mas parámos o despacho que mandava desenvolver com urgência um sistema que nunca funcionou e que os próprios juizes evitavam usar.
- O contrato do Campus da Justiça de Lisboa vai ser renegociado?
- Já está a ser renegociado. O Estado paga €l,4 milhões por mês.
- Admite sair de lá?
- Há tribunais com competência na área criminal e por questões de segurança preocupa-me muito que continuem ali, porque aqueles edifícios foram feitos para funcionar como escritórios e não para julgamentos. As varas criminais vão ter de ser recolocadas. E quando falo de negócios ruinosos também falo da venda do EPL à Estamo e o ministério ficar a pagar uma renda que esgota em dez anos o que recebeu. Como acontece em Pinheiro da Cruz.
- As pessoas que conduziram esses negócios em nome do Estado vão ser responsabilizadas?
- Eu fiz o que tinha a fazer. Houve negócios com certificação dos órgãos fiscalizadores e tem de haver um limite para a responsabilização individual. Se as pessoas infringiram esses limites têm de ser responsabilizadas, se não infringiram não há como responsabilizá-las. Infelizmente.
- Como se explica que um português acusado de matar outro português num país estrangeiro esteja na iminência de não ser julgado?
- Eu acho que não é bem assim, mas não posso falar de casos concretos.
- Não estamos a falar de um caso...
- Essa situação tem um rosto. O que posso dizer é que já não há impunidades mundiais.
- Portugal não extradita para o Brasil.
- É o que se tem dito, mas não será bem assim. Depende. A regra é essa, mas depende.
"A bem da saúde pública espero que a lei do enriquecimento ilícito passe"
Antes de ser escolhida para ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz acusou o procurador-geral de não ter uma visão democrática do Ministério Público e sugeriu a sua demissão. Mas Pinto Monteiro mantém-se no cargo e, apesar de a ministra assumir as divergências, não vai haver demissão.
- As suas divergências com o PGR Pinto Monteiro mantêm-se?
- As divergências são claras e mantêm-se.
- Ele vai cumprir a comissão de serviço até ao fim?
- Essa decisão é também da competência do Presidente da República.
- Por proposta do Governo.
- É verdade mas nunca traria para a praça pública questões interinstitucionais
- E é razoável ter uma ministra da Justiça com conceções diferentes do PGR?
- Com certeza que é. A ministra da Justiça e o procurador exercem funções diferentes, fazem coisas diferentes e até se dizem de maneira diferente, como diria o Oscar Wilde.
- O PGR também pensa de uma forma diferente sobre a lei de enriquecimento ilícito que o Governo apresentou ao Parlamento. Disse que não valia a pena estar a apresentar uma lei que será declarada inconstitucional pelos tribunais.
- A bem da saúde pública do país espero que a lei não seja declarada inconstitucional. Percebo que seria um caso de satisfação para muitos. Dizer que esta lei é inútil é dizer que o combate à corrupção é inútil porque é difícil de provar. E tal como está feita não há uma inversão do ónus da prova.
- O que pensa das críticas de Cavaco Silva ao Orçamento do Estado?
- Não penso que o senhor Presidente tenha feito críticas ao Orçamento. Penso que quis dar uma contribuição, fazer alguns alertas. Não me cabe interpretar o que o Presidente diz ou pretende dizer,
- Este Governo não está a revelar pouca preocupação social?
- Não acho que este Governo tenha falta de preocupações sociais. Mas chegámos a um ponto tal em que as contribuições necessárias vão ser muito dolorosas, vamos tentar a todo o custo e a solução encontrada foi a menos dolorosa. Acredite que as outras hipóteses em cima da mesa eram muito mais penosas.
- Não há membros do Governo com uma visão demasiado tecnocrata da vida? Pelo menos, mais do que a sua.
- Não me parece que pessoas com profissões sejam tecnocratas. Fomos governados por pessoas sem vida profissional...
- Não sente que há dois partidos no Governo?
- Não. E num momento de emergência nacional como este nem se devia sentir, mesmo que houvesse cinco ou seis partidos.
- O ministro Paulo Portas não anda demasiado desaparecido?
- O ministro dos Negócios Estrangeiros está a cumprir um roteiro que tem objetivos claros e definidos.
Expresso | sábado, 12 Novembro 2011