
Relações. O Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, cortou ontem a parceria estratégica com Portugal. A gota de água foi a polémica Rui Machete e o facto de só terem sido conhecidos os nomes angolanos da investigação (13) e não os das personalidades portuguesas da banca e negócios
EDITORIAL OPINIÃO DE SEIXAS DA COSTA
Investigação do DCIAP envolve 26 empresários portugueses e 13 angolanos
Crise. Altas figuras do Estado angolano já entregaram declarações fiscais e de rendimentos no MP. Gestores de topo e banqueiros são a maioria dos portugueses 'envolvidos'
CARLOS RODRIGUES LIMA
A investigação do Ministério Público português a altas figuras do Estado angolano, que tem provocado crispação diplomática, tanto pode acabar no caixote do arquivamento como se pode transformar num barril de pólvora judicial: é que, além dos 13 cidadãos angolanos, um antigo embaixador de Angola denunciou também 26 empresários portugueses - desde banqueiros a gestores de topo, os quais nos últimos anos têm mantido relações de proximidade com a política e economia angolanas.
Segundo o DN apurou na lista de denunciados do antigo embaixador angolano poderão estar empresários ligados a sectores da energia, distribuição, banca, advocacia e construção civil.
Este processo, que corre no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), tem estado na origem dos sucessivos "mal-estares" do Governo angolano, que culminaram, ontem, com a suspensão da "parceria estratégica" com Portugal, anunciada pelo Presidente José Eduardo dos Santos.
Depois de entregar uma primeira denúncia, na qual só identificou como suspeitos as filhas de José Eduardo dos Santos - Isabel dos Santos e Thizé dos Santos - e o general Hélder Vieira Dias, "Khopelika", chefe da casa militar do Presidente angolano, Adriano Parreira (antigo embaixador angolano, condenado pelo Supremo Tribunal de Luanda pelo desvio de 1,2 milhões de dólares) fez um aditamento à queixa inicial, colocando no rol de suspeitos várias figuras do Estado angolano, como o atual número dois do Governo, Manuel Vicente, e o governador da província de Kuando-Kubango, Higino Carneiro.
Ora, ao que o DN apurou junto de uma fonte próxima da diplomacia angolana, "Khopelika", Manuel Vicente e Higino Carneiro já fizeram, há muitos meses, chegar ao DCIAP declarações fiscais, de rendimentos e de património. Porém, o processo tem sido mantido em aberto. "Foram prestados todos os esclarecimentos e mais alguns, só que, aparentemente, o Ministério Público está à espera de investigar toda a gente para arquivar ou acusar", referiu a mesma fonte, acrescentando que o "mal-estar" decorre, precisamente, da morosidade. "Enquanto não há decisão, os governantes angolanos já foram condenados publicamente", disse a mesma fonte. "E só se fala nos angolanos", precisou.
Por isso, quando José Eduardo dos Santos falou ontem de "incompreensões ao nível da cúpula", ao mesmo tempo que anunciou a suspensão da "parceria estratégica" com Portugal, não estaria só a referir-se ao poder político, mas também à Procuradoria-Geral da República.
Em fevereiro deste ano, o Expresso noticiou que o procurador-geral angolano, José Maria de Sousa, estava a ser investigado pelo DCIAP. "Uma fuga de informação que nem mereceu, através de uma simples carta, um pedido de desculpa da procuradora-geral portuguesa ao homólogo angolano", referiu a fonte. Ambos os procuradores até estiveram juntos, em julho, na Cimeira de procuradores-gerais da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), mas "não houve uma palavra sobre o assunto por parte de Joana Marques Vidal", acrescentou a mesma fonte. Tudo somado, levou a um resultado óbvio: Angola suspendeu a parceria estratégica com Portugal.
"Parceria estratégica com Portugal já existe faltava apenas formalizá-la"
Diplomacia
Governo continua a preparar cimeira luso-angolana prevista para fevereiro. Fonte diplomática garante ao DN que Portugal perdeu a "posição privilegiada"
O presidente da Câmara do Comércio e Indústria Portugal-Angola, Bayan Ferreira, afirmou ontem ao DN que a "parceria estratégica entre os dois países já existe na realidade, falta apenas registá-la no papel". Inquirido sobre a afirmação do Presidente angolano, Bayan Ferreira limitou-se a responder: "Respeito e compreendo a atitude do Presidente Eduardo dos Santos", que "foi sempre um entusiasta" do avanço da parceria estratégica entre os dois países. Aliás, garante o responsável, "as relações bilaterais não sairão lesadas; são exemplares, não são perfeitas" e "há sempre soluções quando existe boa vontade".
Suspender a parceria? "Não, ela vai continuar, empresário a empresário, projeto a projeto. Em Angola, os portugueses não são perseguidos; são relações especiais", garante o responsável. Bayan Ferreira reconhece que há algo que "indispõe" Luanda, por exemplo, como "quando surgem noticias que têm a ver com fugas ao segredo de justiça" ou se comenta os investimentos em Portugal como se "não fossem bem-vindos".
Por seu turno, fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros português garantiu ao DN: "Continuamos a preparar a cimeira bilateral" que está agendada para fevereiro de 2014. "Não temos informação em contrário".
A coberto do anonimato, fonte diplomática explicou ao DN que a afirmação de Eduardo dos Santos significa que, a partir de agora, Portugal "deixa de estar numa posição privilegiada" para investir em Angola ou ser recetor de investimentos angolanos. "Estamos a viver um momento sério" nas relações bilaterais, disse a mesma fonte, para quem uma das causas desta crise se prende com o "descuido como se fala em Portugal; com o uso e abuso da palavra; fala-se sem pensar nas consequências"."Os sucessivos ataques a dirigentes angolanos", as "investigações judiciais que nunca chegam ao fim, cujo resultado nunca é conhecido" são situações que não agradam a Luanda e de que o Presidente Eduardo dos Santos fez eco no seu discurso sobre o Estado da Nação.
As cúpulas, a que aludiu o Presidente de Angola, "não é só o Governo e as instituições mas também os donos de empresas, incluindo as de comunicação social", adiantou. L.R.
Caso Rui Machete foi a "gota de água" para Governo de Luanda
Crispação
Luanda não gostou de ver o ministro dos Negócios Estrangeiros português a ser desmentido pela PGR. E mais incomodada ficou quando Passos Coelho reduziu a uma "expressão infeliz" um "pedido de desculpas"
A confiança que o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Luís Campos Ferreira, transmitiu, na semana passada, no final de uma visita a Angola pode ter um paralelo com as declarações de Rui Machete à Rádio Nacional de Angola.
O ministro disse, em resumo, que os processos judiciais eram apenas questões burocráticas, o que não se confirmou, Luís Campos Ferreira garantiu que as relações Portugal-Angola eram "excelentes", sem necessidade de "apaziguar os ânimos".
Ontem, o Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, vincou o contrário: "Com Portugal, as coisas não estão bem."
De acordo com fonte próxima da diplomacia angolana, as tais "coisas" já não estavam "bem" desde os sucessivos casos relatados na imprensa portuguesa sobre as investigações a altas figuras do Estado angolano. Em Luanda, criticava-se as eventuais violações do segredo de justiça, assim como a morosidade dos processos (ver texto nesta página). Porém, depois de o DN ter divulgado em território português as declarações feitas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros à Rádio Nacional de Angola tudo se complicou.
Rui Machete, recorde-se, invocando o seu conhecimento através de "informações genéricas" prestadas pela procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, garantiu que nos processos não havia "nada substancialmente digno de relevo e que permita entender que alguma coisa estaria mal, além do preenchimento dos formulários e de coisas burocráticas", pedindo "desculpas diplomáticas" ou "diplomaticamente desculpa" a Angola.
No mesmo dia em que o DN reproduziu tais declarações, a Procuradoria-Geral da República emitiu um comunicado, garantindo que Joana Marques Vidal não abordou o assunto dos processos com ninguém. Ou seja, o ministro passou um "atestado de inocência" sem estar na posse de elementos que o sustentassem.
De acordo com a mesma fonte, em Luanda instalou-se um "mal-estar", já que "um Estado recebeu uma garantia de um representante de outro, a qual, afinal, não era verdadeira". A intervenção do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, acabou não por ter um efeito apaziguador, mas sim potenciador da polémica. O governante português reduziu as declarações do seu ministro dos Negócios Estrangeiros a uma "expressão menos feliz". Ficou a dúvida na diplomacia angolana: qual expressão? A declaração sobre os processos judiciais ou o pedido de desculpas público?
Depois da declaração de José Eduardo dos Santos, suspendendo a "parceria estratégica" o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, fez uma declaração, que pode ser entendida como uma crítica a Rui Machete: "Talvez agora se perceba melhor porque é que o CDS sempre teve uma postura de não dizer nada nem praticar qualquer ato que pudesse prejudicar os 150 mil portugueses que trabalham e vivem em Angola ou as dez mil empresas que exportam." C.R.L.
PS fala em 'lamentável deterioração' e culpa Executivo
Reações
O secretário-geral do PS considerou ontem que "o PS não pode deixar de voltar a criticar o Governo português, que, num momento tão delicado como o atual, contribuiu para uma lamentável deterioração das relações bilaterais".
Sendo, no seu entender, que "a relação entre Portugal e Angola vai para além da economia e dos negócios", Seguro deixa um apelo a ambas as partes: "As mais altas autoridades, tanto em Portugal como em Angola, devem empenhar-se no esforço de normalização política."
Pelo PCP falou o deputado António Filipe, que considerou que a origem do problema está em "declarações inaceitáveis" de Rui Machete. Já o Bloco de Esquerda considerou a atitude de Angola como um "desrespeito" a Portugal - mas também enquadrou a atitude no que o MNE português disse. "Ao não se dar ao respeito, é agora, na prática, pressionado, novamente desrespeitado, pelo regime angolano", declarou o líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares.
Diário Notícias | Quarta, 16 Outubro 2013