
Portuguesas casam por mil euros para legalizar estrangeiros na UE
Ilegais Mulheres com dificuldades financeiras são presas fáceis para a realização de falsas uniões. Os imigrantes pagam porque precisam de papéis. Redes ganham a maior fatia do dinheiro e alargam raio de ação aos países nórdicos e do Leste.
Casaram... e viveram longe um do outro para todo o sempre
O 'sim.' Portuguesas "vendem" o estado civil para legalizar estrangeiros. E até podem casar em vários países e continuar solteiras por cá. Mil, dois mil ou mesmo três mil euros parece pouco, mas são quatro meses de salário mínimo, o salário que não têm. Os noivos querem viver no espaço Schengen e chegam a pagar 25 mil euros. No negócio das redes, ganham os cabecilhas que dão "gorjetas" a angariadores, testemunhas, intérpretes e funcionários. Estendem, agora, os tentáculos à Europa de Leste comunitária. Os homens também casam para legalizar estrangeiras mas muitos acreditam que elas os amam
CÉU NEVES (textos)
"Eles prometem mundos e fundos e caímos que nem umas patinhas se estamos mesmo a precisar. Estava na miséria autêntica", justifica Cristina, de 44 anos. Tinha e tem dois filhos e o neto a cargo. "Eles", os cabecilhas, acenaram-lhe com dois mil euros para se casar com um imigrante ilegal. Garantiram-lhe que ninguém da sua família precisava de saber, que não ia ter problemas coma polícia e que o futuro marido nunca a incomodaria. Hoje lamenta-se: "Quando uma pessoa está no desespero é capaz de fazer tudo!"
Desespero é não ter trabalho, ter dívidas que não se conseguem pagar, não ter dinheiro mas ter vícios. Cinco anos depois é a explicação que Cristina dá para estar envolvida numa rede de casamentos por conveniência ou casamentos brancos, como são nomeados. Acabou detida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e já muitos ficaram a saber da união de mentira com um homem cujo nome nunca conseguiu pronunciar.
Duas das filhas também casaram através da mesma organização. "Esta e a mais velha [24 anos], que não sei onde anda" "Esta", é Rosana, de 23. Sentadas num banco de um jardim dos subúrbios de Lisboa, mãe e filha contam como se deixaram levar por algumas centenas de euros. Percebe-se nas entrelinhas que continuam a ser contactadas por elementos que organizam estes casamentos e que continuam a precisar de dinheiro... A mãe tem um trabalho temporário, a filha está desempregada. As duas vivem no concelho da Amadora e foram casar a Vila Nova de Gaia. "É assim", explica Rossana, "os das redes perguntam se queremos casar e nós perguntamos 'quanto'? Depois dizem-nos quem são os maridos. Prometeram-nos dois mil euros por casamento, mas nunca deram isso."
"Os das redes", em regra, recrutam as mulheres nos bairros periféricos e pobres das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, basta que tenham um cartão de identidade europeu. Portuguesas de baixa condição socíoeconómica e em situações de extrema vulnerabilidade, solteiras, viúvas ou divorciadas. Os elementos da organização, normalmente membros das comunidades imigrantes legalizados no País, encarregam-se de fazer a documentação e acompanhar as mulheres aos organismos públicos se for necessária a presença delas para obter os documentos.
As noivas têm de se deslocar aos serviços para colocar a apostila nos assentos de casamento, um certificado de autenticidade dos documentos públicos para apresentação no estrangeiro. Têm de fazer o passaporte, que é a identificação que usam no estrangeiro por não referir o estado civil, para atestar uniões de facto, regularizar o marido, comprar ou arrendar casa, etc. Têm de se deslocar ao país onde o noivo vai pedir o título de residência.
As mulheres viajam com total desconhecimento de com quem vão e para que sítio se deslocam. E, salvo os procedimentos obrigatórios para o casamento e a regularização do imigrante, continuar na sua rotina diária fora destes encontros. Nem sequer atualizam o estado civil nos documentos oficiais porque este é um segredo bem guardado. Os maridos não ficam em Portugal.
Elas acreditam que se podem divorciar passados três anos ou quatro, pensam que isso acontecerá logo que o imigrante se legalize através do casamento com uma cidadã comunitária E têm de estar disponíveis para as deslocações, já que as quantias prometidas lhes são pagas em parcelas. Muitas queixam-se de não obtero acordado, que lhes pagaram apenas mil ou 1500 euros, mas há quem receba três mil euros.
"Vítimas? Olhe, acabamos por ser nós. Aproveitam-se um bocado da nossa falta de dinheiro e da aflição das mulheres por não terem trabalho", assegura Carla Marisa, uma das noivas envolvidas no processo de Gondomar. Esta rede (PJ) e o caso Binder (SEF) foram os primeiros megaprocessos de casamentos por conveniência no País.
As portuguesas
"Oriundas de bairros carenciados, prostitutas ou toxicodependentes, em alguns casos com vários filhos a cargo e até a viver com outro homem", assim se descrevem no processo Binder-Bind as portuguesas que aceitam casar. A rede realizou, entre 2007 e 2010, 175 casamentos (os provados) entre portuguesas e indostânicos (sobretudo paquistaneses e indianos) . São as Lilianas, as Carias, as Vânias, as Marlenes, as Isas, asTatianas, as Cristinas, as Paulas, as Sandias, as Patrícias, as Raquéis, as Mónicas, as Martas, as Saras, as Márcias e as Filipas, as Anãs e as Marias, nomes compostos e muitos deles conjugados entre si.
"Tudo nomes pobres, não é?" observa Carla Cristina, outras das noivas de Gondomar enquanto espera para ser ouvida pelos juizes. Não são só os nomes, também as histórias de vida são muito semelhantes.
"Não tinha a noção do que estava a fazer, acho que ninguém tem. Fui várias vezes a Espanha (três a Barcelona) e só depois me apercebi da gravidade da situação, a verdade é que o dinheiro que me deram ajudou imenso", conta Carla Marisa. Não teve medo de viajar com desconhecidos? "Pensei nisso e avisei uma amiga, mais ninguém soube. Telefonava-lhe todos os dias quando estava fora. Tinha 38 anos na altura, hoje tem 42, três filhos e continua sem emprego.
Deslocou-se a Espanha com outras noivas, onde abriu contas bancárias e entrou em repartições públicas espanholas que não consegue identificar. Da cerimónia lembra-se de ser uma confusão, o marido nunca mais o viu. "Estavam 18a 19pessoas na conservatória e o meu casamento não estava marcado. Depois ele [um membro da rede] entrou lá para dentro e voltou a dizer que estava tudo bem, que podíamos casar."
Carla Cristina, tal como Carla Marisa, vive na zona de Lisboa. Levaram-na em setembro de 2008 a Gondomar. Vivia com o filho de 2 anos e com a mãe, esta "muito doente". "Tinha um café que não estava a dar e chegou-me lá uma rapariga com a novidade [casar com um imigrante ilegal] e pensei que me podia safar, disseram que recebia 1500 euros. A minha mãe só soube quando a PJ me foi procurar, preguei-lhe um grande susto. Chateou-se tanto". Enquanto esperava para "dizer o sim", foi testemunha de um outro casal, ela portuguesa e ele paquistanês,, tal como o seu marido.
Carla Cristina tem atualmente 32 anos, vive com o namorado, o pai do segundo filho (o menino tem dois anos). Só quer esquecer tudo, afastar-se dos tribunais porque, diz, está muito feliz. "Recebi 600 euros quando fui à conservatória, o resto do dinheiro davam-me em Espanha. Mas tive medo e já não fui. Não mudei o BI, aliás está caducado. Pensava que ao fim de três meses divorciava-me e ninguém sabia. Até já perguntei ao juiz se, agora, me posso casar e batizar o menino no mesmo dia. Ele diz que não!"
Os estrangeiros
As redes organizadas a operar em Portugal trabalham com imigrantes ilegais, quer residam na Europa ou ainda estejam nos países de origem, oriundos sobretudo do Paquistão, da índia e do Bangladesh, de Marrocos, um ou outro do Nepal. Há também nigerianos mas esses operam no estrangeiro. Depois há todo um leque de imigrantes que combinam uniões, como os brasileiros, mas a maioria não tem por detrás uma rede organizada São casamentos individuais, explica Luísa Maia Gonçalves, investigadora do SEF e ex-diretora da Direção Central de Investigação e Análise de Informação (DOPAI), sendo mais difícil detetar as fraudes. Quando se descobre cada uma destas uniões resulta num inquérito e o SEF já ultrapassou os 300 no final de2012. A GNR, através do Núcleo de Investigação Criminal do Destacamento Territorial de Vila Real, desmantelou em janeiro de 2012 uma rede de casamentos fictícios. Catorze meses de buscas culminaram na constituição de dois arguidos: um português e uma espanhola Angariavam homens para casarem em Portugal e em Espanha com estrangeiras, maioritariamente brasileiras. As "vítimas" acabam por ser os portugueses que se convencem ter encontrado o grande amor, quando, afinal, servem apenas o objetivo de quem se quer legalizar", refere Carlos Patrício, coordenador do Gabinete de Estudos e Planeamento e Formação do SEF. Mais recentemente, também o casamento gay é expediente para a legalização. Voltar às histórias de Cristina e da filha Rossana é falar das vidas de centenas de mulheres recrutadas pelas redes de imigração ilegal. É comum a mãe levar a filha, a irmã levar a irmã e a prima, a amiga levar a amiga ou uma simples conhecida. O contacto faz-se através do passa-palavra, numa ou outra situação por anúncios duvidosos. Há quem tenha procurado emprego e receba uma proposta de casamento.
Cristina e Rossana aceitam um encontro com o DN num jardim municipal, "desde que não se perceba" do que falam. São conhecidas na zona, Rossana pede um cigarro e conta: "Íamos de madrugada, saímos da Mina [Amadora] às 06.00 para lá estar [no Norte] às 11.00." Nunca tiveram medo? "Não, íamos sempre umas quatro ou cinco. Eles eram bonzinhos, muito simpáticos, nunca nos tocaram, pelo contrário, só que eram mentirosos. Não pagavam o prometido."
As duas casaram em 2007, quando estas celebrações se faziam, a maioria delas, em conservatórias do Norte. A lei que criminaliza estes casamentos é de 4 de julho desse ano e só teve verdadeiramente efeitos a partir de 2009. Aliás, só a partir de 2010 o Ministério da Justiça passou a disponibilizar dados dos crimes de casamento por conveniência.
Estes casos eram julgados anteriormente no âmbito dos crimes de auxílio à imigração ilegal. A nova legislação, mas sobretudo a mediatização do caso de Gondomar, levou à alteração dos procedimentos nas conservatórias. Passaram a enviar os processos de casamentos com estrangeiras para o SEF, polícia que considera um exagero tal prática, até porque na maioria das vezes dão seguimento administrativo, a não ser que existam suspeitas de ilegalidades.
Telefonemas
Toca o telemóvel e Rossana atende. Avisa a mãe: "A Lestá a ligar-me." E responde a quem está do outro lado: "Se me voltarem a chamar, digo para primeiro meterem os mil euros na minha conta bancária. Está descansada!"
A mãe resume: "Querem que a minha filha vá a Londres, para assinar uns papéis e comprar casa." Não especifica de quem são os papéis e se estão a combinar mais uma falsa união, mas a conversa encaixa nos procedimentos habituais em que as portuguesas viajam para o estrangeiro para simularem uniões com cidadãos não comunitários. Rossana comenta; "Se insistirem muito ainda vou comer mil euros!" A rapariga casou-se com um indiano em Portugal que se legalizou na Bélgica. "Porque as coisas correram mal em Espanha. Foi a única forma de aprender a andar de avião. "Fiz umas seis viagens. A primeira vez foi só para dizer que ele era meu marido. Nunca dormíamos com eles, íamos para hotéis ou pensões. Ficava lá três ou quatro dias, havia sempre mais portuguesas, era giro. Davam-nos dinheiro para gastar, o que era mais complicado eram as falas e eles são muito trapalhões", conta Rossana.
O número de viagens depende das exigências dos países de acolhimento para a legalização do estrangeiro, por exemplo, pode ser necessário simular uma vida em comum. "Os daqui recebem ordens dos chefes de lá. íamos quando diziam para ir", diz Cristina. A mulher recua ao tempo em que nem sabia que existiam tais esquemas: "A primeira vez que me perguntaram se o queria fazer disse que não, tive medo, tive quatro ou cinco anos para o fazer. Um conhecido apresentou-me o homem com quem ia casar. No dia do casamento fui com mais outra rapariga, depois viajei de carro várias vezes a Espanha para ele se legalizar."
É difícil perceber como é que os funcionários das conservatórias e dos registos civis não desconfiam. Os sinais de que são casamentos arranjados testemunham-se nos tribunais. Transformam-se em certezas para meter na prisão sobretudo os cabecilhas das redes, já que parte dos restantes elementos têm sido absolvidos ou apanham pena de prisão suspensa. Sinais que passaram despercebidos à conservadora de Gondomar que realizou 249 casamentos entre portuguesas e indostânicos de 25 de novembro de 2007 até 9 de janeiro de2009, dia em que foi detida. O tribunal de primeira instância obteve a prova de que 122 casamentos era falsos mas acabou por a absolver.
Casamentos diferentes com as mesmas testemunhas e intérpretes, marcados no dia e realizados sucessivamente, na maioria das vezes fora do horário de expediente ou ao sábado. Casais e testemunhas vestem roupa prática. Os noivos conhecem-se nas conservatórias e nem sequer fingem contactos anteriores. Não têm uma língua comum. Não trocam alianças e quando as trocam são emprestadas ou em pechisbeque. Não selam o casamento com o beijo da praxe e cada um vai para seu lado.
"Fui no carro a decorar o nome dele e, mesmo assim, não consegui Estava nervosa, acho que mal cheguei ao Porto arrependi-me, mas depois pensei que me podia separar ao fim de seis meses. Na verdade, não me lembro de quase nada desse dia Foi uma testemunha que me emprestou a aliança", lembra Raquel Filipa. Tem agora 24 anos, mais quatro do que quando se casou. Tinha na altura uma filha de cinco meses. "Trabalhava numa copa e despediram-me com seis meses de gravidez. Precisava de dinheiro." Em relação àquele que ainda é seu marido conta: "Vivia em Espanha, acho que era indiano." E até levou o namorado ao casamento: "Fui casar a Espanha e a rapariga que trabalhava com eles disse que podia ir acompanhada..."
Ir casando por toda a Europa e continuar solteira
Deslocalização. Redes avançam na Europa à medida que são detetadas e mantêm recrutamento no País. "Xeque ao Rei" foi uma operação europeia que deteve 26 pessoas, em Portugal, França e Reino Unido. E também há portugueses condenados lá fora
Os casamentos realizados no País entre nacionais e estrangeiros têm diminuído nos últimos anos, sobretudo entre portuguesas e cidadãos da índia, do Paquistão e do Bangladesh. Não quer dizer que sigam a tendência dos tempos nem que as redes tenham fechado a atividade em Portugal, diz o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Estas organizações continuam a recrutar mulheres, desta vez para casar ou simular uniões de facto em países do espaço Schengen, agora na Europa do Leste. E elas continuam "solteiras". A mancha geográfica onde atuam as redes de casamentos brancos abrange cada vez mais países europeus, progredindo no terreno à medida que vão sendo detetadas pelas polícias nacionais. Os cabecilhas destas associações criminosas têm tentáculos em zonas estratégicas. Muitos deles são estrangeiros integrados nesses países e com facilidade de circulação que recrutam sobretudo mulheres, mas também homens, embora em muito menor número. Existem, também, acordos matrimoniais entre casais, tendo em vista a legalização de um deles, mas não têm por detrás uma rede e são mais difíceis de provar. Casamentos heterossexuais e, com a nova lei, de homossexuais.
As dificuldades económicas e o desemprego alargam o leque de recrutamento em Portugal. Além de que a mesma mulher casa em diferentes países e não faz a transposição do casamento nos consulados portugueses para os registos civis nacionais. Não é obrigatório e não há troca de informação entre os organismos públicos. O casamento por conveniência é crime desde 4 de julho de 2007 e as uniões fictícias eram antes julgadas no âmbito do auxílio à imigração ilegal. Mas, em regra, este está associado aos de associação criminosa, auxílio à imigração ilegal, falsificação de documentos, burlas e fraudes.
Inicialmente, as mulheres casavam em Portugal e os maridos pediam a autorização de residência num outro país europeu, preferencialmente em Espanha. Obtinham o título de residência "na qualidade de familiar de cidadão comunitário, designadamente por ser casado com uma portuguesa", explicam os tribunais. Não era (e não é) intenção destes imigrantes residir no País.
Com o desmantelamento de organizações a atuar no País, as redes deslocaram-se para Espanha, Reino Unido, França e Bélgica. E continuaram a realizar casamentos e uniões de facto fraudulentas, estas mais na Holanda. As polícias seguiram-lhes o rasto, empurrando-as para os países nórdicos, onde basta uma declaração em como o casal vive junto para um estrangeiro obter a autorização de residência. As portuguesas são recrutadas para casamentos por conveniência ou uniões fraudulentas realizadas na Noruega, na Finlândia, na Dinamarca, na Alemanha e na Suécia. Recentemente passaram a casar-se na Roménia, na Polónia, na Letónia, na Eslovénia e outras nações de Leste recém-chegadas à UE. "Estamos desde há algum tempo perante uma evolução qualitativa e quantitativa deste fenómeno criminal, que consiste na organização e realização de casamentos de conveniência ou simulação de uniões de facto entre cidadãs portuguesas e indivíduos nacionais de países terceiros. É também um facto que as conservatórias de Registo Civil em Portugal estão mais atentas e alertadas quanto à possibilidade de estarem perante um eventual casamento de conveniência, participando ao Ministério Público", explica o diretor do SEF, Jarmela Paios.
Quando são descobertos os casamentos de conveniência, os noivos são constituídos arguidos mas raramente são apanhados. E o Ministério Público tem optado por ouvir as noivas na qualidade de testemunhas. Isso não impede que seja retirada uma certidão por cada uma e aberto um processo judicial e as falsas noivas acabam por apanhar uma sanção pecuniária ou trabalho cívico.
No final de 2012, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras desmantelou uma rede com tentáculos em Espanha, França, Suécia, Reino Unido, Dinamarca e Alemanha, o que levou à constituição de uma Equipa de Investigação Conjunta de Portugal, França e Reino Unido sob o patrocínio do EUROJUST (organismo da UE para os crimes transfronteiriços). "Xeque ao Rei", assim designaram a investigação, levou à detenção de 26 pessoas, em França, no Reino Unido e em Portugal (seis). Ainda em fase de acusação, os arguidos respondem pelo crime de casamentos de conveniência, de auxílio à imigração ilegal e falsificação ou contrafação de documentos. Outra rede desmantelada nos dois últimos anos levou à condenação do principal arguido a uma pena de cinco anos e seis meses de prisão. Um segundo arguido apanhou cinco anos e três meses de prisão e os restantes três levaram entre um ano e dois meses e três anos. A decisão condenatória está em fase de recurso e envolveu uma organização criminosa formada por estrangeiros de origem indostânica. E há portugueses detidos no estrangeiro associados a estes crimes. Já este ano foi condenada uma portuguesa a quatro anos de prisão pelo Tribunal de Manchester, em Inglaterra. Era uma ex-professora que organizava casamentos entre portuguesas e indostânicos. E, o mês passado em Londres, duas mulheres foram acusadas de bigamia por estarem envolvidas numa rede que organizava casamentos com nigerianos. Uma foi condenada e a outra aguarda sentença.
O conto de fadas de Margarida
Fugir dos maus tratos. Não amava o homem com quem vivia, o pai dos filhos, que a agredia. Casou então por dinheiro mas quis ficar com Masaud. Foram detidos e condenados, venceram as dificuldades. Amam-se e são felizes Margarida foi contratada para casar. Deslocou-se à conservatória, assinou os papéis, mas não regressou a casa como as outras mulheres angariadas pelas redes de casamentos falsos. Arriscou ficar com um desconhecido para não voltar aos maus tratos do companheiro. O futuro tinha de ser melhor do que isso. Acreditou no conto de fadas e que seriam felizes no final, mas tudo "se complicou". Teve de ficar afastada dos filhos, a organização foi descoberta e ela e o marido condenados em tribunal (pena suspensa) . O casal aprendeu a amar-se e vive actualmente em França. Margarida continua a acreditar no seu conto de fadas.
"Sinceramente, casei com a intenção de ficar com ele. Não o conhecia mas como tinha muitos problemas com o pai dos meus filhos vi uma oportunidade de melhorar a minha vida e de proteger os meninos. Depois, tudo correu mal", conta Margarida Miranda, que agora responde por Margarida Ahmed, o apelido do marido paquistanês. O primeiro choque foi perceber que o ex-companheiro não deixaria seguir com ela os filhos. Acordou para o mundo real. Bateu no fundo quando a PJ a deteve no decorrer da investigação do caso de Gondomar. Mas mesmo mau foi quando ouviu as acusações no tribunal. Cinco anos depois, não se arrepende da escolha. Acredita que vai viver como marido e os filhos em Portugal, comprar uma roulottee vender cachorros e kebab.
Masaud e Margarida casaram no dia 14 de março de 2008 na Conservatória de Gondomar. "Era solteira .Vivi 12 anos com um homem, tive quatro filhos mas nunca casei com ele. Era infeliz..." Agora, garante, é feliz, apesar de estar longe dos filhos e do País. Festejaram este ano o quinto aniversário de casamento e ela recebeu de prenda do marido um smartphon e de última geração. "Não costumava receber presentes!"
Criada em instituições
Margarida "cresceu num ambiente familiar disfuncional, marcado por episódios recorrentes de violência, carências económicas, abandono parental e migração", descreve o tribunal. A falta de dinheiro e a violência doméstica eram, também, constantes na vida com o ex-companheiro, o que levou à intervenção da Comissão de Proteção de Menores e à institucionalização das crianças. Mais tarde, os filhos regressaram a casa com o apoio de técnicas da Segurança Social mas a instabilidade conjugal reencaminhou-os de novo para a instituição. O tribunal argumenta que Margarida vivia revoltada por a mãe a ter entregue a uma instituição e ela terficado sem ver os irmãos. Consumiu estupefacientes durante dois anos, que deixou com a ajuda de técnicos de reinserção social. "A minha mãe deixou o meu pai tinha eu 5 ou 6 anos. Ela era muito irresponsável e fui para um colégio, estive lá dos 7 aos 18 anos. Nunca mais vi o meu pai, apesar de me dar com os filhos dele. Fui criada sem família e o meu anterior marido não é uma pessoa de respeito", justifica Margarida Chegou a viver na rua depois de deixar a instituição. Tem 38 anos e é natural de Vila Nova de Gaia.
Margarida várias vezes esteve separada do ex-companheiro, na última voltou para poder ficar junto dos filhos. A família estava de novo reunida quando lhe fizeram a proposta de um casamento falso. Foi linda, uma amiga do sobrinho do pai dos filhos, que lhe falou na possibilidade de casar com um imigrante ilegal. Casou e acabou a colaborar com a rede, segundo a sentença. Entre outras tarefas, angariou mulheres, intermediou contactos e foi testemunha de casamento. Lê-se no acórdão: "A arguida Margarida era casada [vivia maritalmente], tinha quatro filhos e era agredida pelo marido. Conheceu o arguido Masaud Ahmed e viu neste casamento uma forma de pôr fim ao sofrimento e solidão. O casamento foi propiciado por um indivíduo de nacionalidade paquistanesa, que dá pelo nome de Naveed. Após o casamento, a relação evoluiu para uma relação afetiva normal, vivendo juntos, partilhando cama, mesa e habitação."
Naveed não foi encontrado para o julgamento, embora mantenha a habitação no Norte de Portugal e existam relatos da sua presença, como o DN confirmou no local.
Asilo recusado
Masaud Ahmed tem 31 anos, nasceu em Rawalpindi, cidade do Paquistão, da província de Punjab. É o mais novo de quatro irmãos, dois deles professores. Emigrou para a Coreia do Norte após deixar a escola, onde se empregou numa fábrica de televisores. Não conseguiu regularizar a sua situação neste país e viajou para França, em 2004, para trabalhar num restaurante. Pediu, então, o estatuto de refugiado, o que lhe recusaram. Deram-lhe trinta dias para deixar o território francês, obrigação que não acatou. Deixou o restaurante para trabalhar nas obras e dormia nos contentores junto aos estaleiros. Foi apanhado pela polícia e migrou para Portugal. Já tinha estado em Lisboa e foi fácil conseguir contactos. Diz que pagou sete mil euros para que lhe arranjassem uma esposa. Masaud acabou na conservatória de Gondo mar para casar com Margarida. Um membro da rede disse-lhe que ela não se importava de ficar com ele e ele disse que "sim". Masaud é islâmico e pode ter mais do que uma mulher. Margarida é a primeira e pretende ser a única O casal foi viver para Gondomar. Voltando ao acórdão: "O casal Ahmed passou a colaborar com o Ashiq [condenado como cabecilha da rede] e, incidentalmente com os seus irmãos, quer obtendo o acordo de mulheres para casar a troco de dinheiro, o arguido Masaud como intérprete e a arguida Margarida como testemunha" Factos provados através de escutas, documentos, relatos policiais e testemunhos. Foi Margarida quem entregou à conservatória o único bem material comprovado em tribunal: um perfume. A falta de trabalho levou-os até França e Margarida viajou com os filhos. Regressaram a Portugal ao fim de dois meses porque, além de não terem dinheiro, o ex-companheiro acusava- a de ter fugido com as crianças. Os quatro têm hoje 8, 12, 14 e 15 anos e ainda decorre o processo de regulação do poder paternal. "O pai deles não entende o meu gesto, mas os meus filhos compreendem."
Estava Margarida preocupada em conseguir a companhia dos filhos, quando a PJ deteve o casal, a 9 de janeiro de 2009, pelas 09.00. O mundo caiu em cima de Margarida; ela e Masaud passaram pelos calabouços da PJ. Aguardaram o julgamento em liberdade e partiram para França, onde ele acabou por arranjar trabalho na construção civil. Vieram a Lisboa para o julgamento e alugaram um quarto até acabarem as poupanças. Juraram perante o coletívo de juizes que passaram "a pernoitar numa estação do Metro". E os magistrados autorizaram que viajassem até França desde que estivessem na leitura da sentença, dia 21 de outubro de 2011.
Bonitos, morenos, ele muito mais alto do que ela, revelaram grande cumplicidade durante as sessões do julgamento, facto salientado pelos juizes. O casal foi acusado de um crime de casamento por conveniência (considerou-se o crime independentemente do número de casamentos) e apanhou dois anos e quatro meses de prisão, com pena suspensa. O Ministério Público recorreu para o Tribunal da Relação, que aumentou algumas penas, mas não as do casal Ahmed.
Europeia e muçulmana
Margarida e Masaud vivem na região de Paris. Ele é pintor da construção civil e ela só recentemente arranjou trabalho, empregos temporários. Ela converteu-se à religião muçulmana. Em casa é uma paquistanesa, sobretudo no vestir e na gastronomia. Nas ruas de França continua portuguesa.
Margarida demonstra assimilar bem as diferenças religiosas e culturais entre Portugal e o Paquistão. E nem sequer vacila perante o facto de as mulheres muçulmanas não poderem sair sozinhas à rua ou falar com homens que não são da família direta. "É muito diferente, mas não tratam mal as mulheres, não os vi bater numa mulher. Elas são felizes." E continua: "Fui o ano passado ao Paquistão, para o Masaud me apresentar à família. Gostei muito de Islamabad, é uma grande cidade. Nas vilas é que há pobreza, não há água, é tudo muito seco. A minha sogra deu-me um dote, algumas roupas e ouro. Perguntaram-me se eu me importava que o Masaud tivesse outra mulher, respondi que primeiro tinha que se separar de mim!" Sentiu-se o centro das atenções.
Masaud pediu a nacionalidade portuguesa, o que é possível após três anos de casamento com uma cidadã nacional. Foi-lhe recusada, embora por lei apenas esteja impedida a quem é condenado a uma pena de prisão efetivaigual ou superior a três anos, o que não é o seu caso. O advogado espera que cumpra a pena suspensa para fazer um novo requerimento, em março.
Arrependida, Margarida? "Não! Nem por nada nem por ninguém deixo o meu marido, apesar das dificuldades que temos passado. Sempre teve respeito e carinho por mim, coisas que nunca tive."
ENTREVISTA; PEDRO CUNHA LOPES
Juiz
"Elas passam por dificuldades e eles procuram trabalho"
É difícil provar-se um casamento falso? Em alguns processos, o Ministério Público (MP) tem seguido uma estratégia, com a qual concordo, que é a de separar os processos das noivas relativamente aos noivos. O MP cria um processo autónomo para as noivas e estas aparecem como testemunhas do processo principal, acabando - até porque já não são arguidas-, por referir que casaram a troco de dinheiro e que não têm relação com os noivos. As declarações como testemunhas são mais fortes do que como arguidas, já que têm de ser corroboradas por outros meios de prova E os noivos não aparecem.
Os que estão em Portugal aparecem... Os que não vivem cá são a maioria.
Se o processo começa a posteriori, já cá não estão. Tive um com 136 arguidos [Gondomar] e foram julgados 13. Agora, mais dois ou três.
Quem são as vítimas?
Acho que é um crime sem vítimas. As mulheres que estão mais desprotegidas é que casam, mas recebem dinheiro e depois divorciam-se. Diria que não é um crime com vítima. Há processos em que sente que as polícias não reuniram provas para a condenação? Na maioria dos casos, isso não ocorre, já há um leque de soluções para fazer a prova, sejam exames, perícias. Pode haver falhas e aí há a possibilidade de pedir novas diligências.
Pede novas diligências com frequência?
Não, normalmente os processos trazem provas documentais, exames e perícias suficientes. As perícias é que demoram muito tempo. Em termos de prova, parece difícil condenar conservadoras que realizaram casamentos. Temos dois casos concretos nessa situação. Uma em que há corrupção e há dinheiro envolvido, aí não há dúvidas de que terá praticado o crime. Outra situação é praticar o crime porrealizar casamentos. O Código Penal não prevê formas para a conservadora investigar a causa dos casamentos; tem de verificar a capacidade matrimonial dos cônjuges e a sua legitimidade para casar. Faço um paralelo com os notários que há dez anos faziam escrituras de imóveis em que se percebia que as quantias eram falsas e, tanto quanto saiba, não houve acusação contra notários.
Nem se fizer muitos casamentos entre portuguesas e imigrantes de determinada nacionalidade e fora das horas de expediente?
Não terá meios legais de obstar à realização desses casamentos. Não está escrito em lado nenhum que tenha a obrigação de o comunicar ao MP Poder-se-á falar na questão dos emolumentos [taxas pagas pela realização do casamento e que são mais elevadas fora do horário normal], não me parece que isso possa constituir motivo para crime.
Noivas tomam-se testemunhas, noivos não aparecem, conservadoras não podem recusar casar. Quem condenar? Os cabecilhas?
São os cabecilhas que promovem o auxílio à imigração ilegal e são os casos mais graves. As noivas são portuguesas que passam por dificuldades e os noivos são estrangeiros que procuram trabalho em Portugal. É uma nova criminalização.
Concorda que seja crime?
Um juiz não tem que concordar ou discordar. No momento atual não me repugna que haja esse crime. O juiz depois valorará a sua gravidade, com cada caso e cada arguido. Como se sentem numa situação em que absolveu e os tribunais superiores condenam? Nada de especial, as pessoas não concordaram com a decisão da 1ª Instância e recorreram. Tomo as minhas decisões de forma ponderada Se vir que me enganei, concordo com a decisão da Relação. Se continuo a acreditar no que fiz .discordo, [presidiu ao coletívo que absolveu a conservadora de Gondomar, depois condenada pelo Tribunal da Relação].
A 1ª Instância decide de uma forma, o Superior de outra. O que pensará o cidadão?
Se as ciências exatas são subjetivas, as ciências humanas são naturalmente subjetivas. O direito é subjetivo e daí o provérbio "cada cabeça sua sentença". Agora, também é certo, quem tem contacto com os arguidos e com os factos é a 1 .a Instância É diferente lidar na Relação ou no Supremo com papéis e ver a pessoas em várias sessões de julgamento. Por outro lado, o comportamento, a simpatia do réu podem aumentar a subjetividade. Subjetividade ou objetividade! Também dá a possibilidade de conhecer a pessoa - por isso muitas não falam em julgamento-, quer para a análise do crime, quer nas medidas da pena
O que lhe chama mais a atenção nos processos de casamentos por conveniência?
A vulnerabilidade das pessoas que têm de casar por dinheiro, os portugueses. E os estrangeiros que estão em países com graves carências sociais e económicas, muitas vezes com guerras internas, e andam milhares de quilómetros para ir para outro país.
Diário Notícias | Domingo, 24 Novembro 2013