
Taxa de 80% usada para justificar lista de abusadores só se aplica a pedófilos psicopatas, 1% dos condenados P20
Crime Paula Teixeira da Cruz diz que os agressores que abusam apenas de crianças reincidem em 80% dos casos, mas segundo um dos maiores especialistas mundiais em pedofilia esse valor só é válido para um subgrupo raro de pedófilos psicopatas
Micael Pereira e Raquel Moleiro
No último fim de semana, em reação a uma notícia do Expresso, a ministra da Justiça divulgou um comunicado em que descriminava os vários tipos de abusadores de menores e afirmava que a taxa de reincidência de 80% que tem vindo a mencionar publicamente para justificar a criação de uma polémica lista nacional de agressores sexuais de crianças diz respeito só a "pedófilos exclusivos". Pedófilos que se sentem exclusivamente atraídos por crianças que ainda não entraram na puberdade. Na realidade, essa taxa elevada de condenados que reincidem no crime está relacionada apenas com um subgrupo ainda mais particular de criminosos, de acordo com um dos maiores especialistas mundiais em pedofilia.
"Uma taxa de 80% é muito maior do que a reincidência verificada em estudos de longa duração sobre pedófilos exclusivos, em que se acompanham os casos durante muitos anos. Esse valor só é verdadeiro para uma minoria muito pequena de agressores que são ao mesmo tempo pedófilos exclusivos e psicopatas, isto é, que são também altamente antissociais", esclarece Michael Seto, diretor da Unidade de Investigação Forense do Royal's Institute of Mental Health Research do Canadá. "A taxa de reincidência para pedófilos exclusivos ronda os 40% nos estudos que têm sido feitos, enquanto para os abusadores de menores em geral oscilam entre os 15% e os 20%."
Michael Seto, cujos estudos sobre pedofilia, psicopatia e reincidência são profusamente citados em artigos científicos, acrescenta que os pedófilos psicopatas representam menos de 10% dos pedófilos. Que já de si representam menos de um décimo dos abusadores de menores. O que significa, por sua vez, que correspondem a menos de 1% de todos os condenados e ex-condenados que vão passar a integrar a lista de abusadores de menores projetada pelo Governo e que poderá vir a ser consultada a pedido dos pais, se suspeitarem de alguém na vizinhança. Em Portugal, segundo uma fonte ligada à investigação criminal, o número de pedófilos psicopatas "é insignificante".
Embora não haja até ao momento nenhum estudo sistemático em Portugal sobre a reincidência deste fenómeno, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) revelou ao Expresso (ver infografia) que apenas 17,6% dos abusadores de menores foram condenados mais do que uma vez, um número muito longe dos 80% reivindicados por Teixeira da Cruz. A ministra da Justiça tinha assegurado, durante um debate em março na Universidade do Porto, que "todos os estudos que existem dão conta de altíssimas taxas de reincidências", referindo inclusive um estudo em Portugal "muito completo" que "aponta para uma taxa de reincidência de 80%". Já numa entrevista à revista "Sábado", em 2012, tinha falado numa "reincidência de 90% a 98%".
No comunicado que divulgou no sábado passado, e sem citar o estudo português mencionado durante o debate no Porto, o gabinete de Teixeira da Cruz apenas esclareceu que o número usado pela ministra diz respeito ao perfil de pedófilo exclusivo, que "terá um impulso sexual, intenso e recorrente, o que é de perspetivar uma altíssima taxa de reincidência".
Questionada esta semana pelo Expresso se a lista aprovada pelo Governo incluirá apenas agressores condenados comprovadamente "pedófilos exclusivos", a ministra não respondeu. Michael Seto faz notar que um registo ou uma lista que inclua todos os abusadores de menores "não permite distinguir os indivíduos mais perigosos dos outros". E diz que, além disso, "não está demonstrado que os registos (ou listas) de abusadores sexuais consigam reduzir a reincidência".
De acordo com um estudo do Hoverno canadiano que analisa mais de 4700 agressores sexuais do Canadá, Estados Unidos e Reino Unido, acompanhados ao longo de décadas, a probabilidade de um abusador sexual de menores condenado voltar a ser acusado por um crime do género (13% ao fim de cinco anos e 23% ao fim de 15) é ligeiramente menor do que no caso de um violador, por exemplo (com 14% e 24%, respetivamente). Um outro estudo publicado pelo Conselho da Europa revela que a reincidência nos abusos sexuais (20%) é, de resto, substancialmente mais reduzida do que a verificada noutros categorias de crime (de 20% a 60%).
Em liberdade, apoio zero
Atualmente, não existe qualquer programa governamental que assegure o acompanhamento dos agressores sexuais de menores condenados após o cumprimento da pena. Em resposta ao Expresso, a DGRSP garante estar atualmente "a trabalhar na adaptação do programa em execução em contexto prisional para que possa vir a ser aplicado em contexto não privativo de liberdade".
Atrás das grades, o acompanhamento especializado para agressores sexuais (de adultos e menores) começou em 2009, concebido pelo psicólogo Rui Abrunhosa Gonçalves (ver caixa).
Desde então, e até 31 de dezembro de 2014, frequentaram o programa 374 reclusos, mantendo-se em aplicação regular nos estabelecimentos prisionais da Carregueira (Sintra) e de Paços de Ferreira, onde cumpre pena o maior número de condenados por crimes contra a autodeterminação e liberdade sexual.
É um número irrisório - pouco mais de 60 inscritos cada ano - quando se contabilizam no presente 338 agressores apenas de menores em cumprimento de pena nas prisões portuguesas. E diminuiria ainda mais se a contabilidade fosse revista no fim do programa: a assiduidade é baixa e o número de desistências elevado. A razão é fácil de encontrar: ninguém é obrigado a participar.
rmoleiro@expresso.impresa.pt
66 horas para não reincidir
O programa de intervenção em agressores sexuais (de adultos e menores) que cumprem pena de prisão efetiva, conduzido pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) em parceria com a Faculdade de Psicologia da Universidade do Minho, inicia-se numa fase precoce da pena e prolonga-se por 44 sessões, de hora e meia, até à saída em liberdade. O recluso passa primeiro por um período de avaliação durante o qual é submetido a uma bateria de provas psicológicas e entrevistas para que se trace uma avaliação completa do indivíduo e do seu comportamento (personalidade, capacidade cognitiva, antecedentes pessoais, enquadramento sociofamiliar, condições de emprego...). Depois trabalha-se a motivação.
Só os participantes que ultrapassam a negação dos acontecimentos e aceitam receber ajuda passam à fase seguinte, a intervenção central, mais prolongada e profunda, orientada para a problemática específica.
Há grupos distintos para violadores e abusadores de menores. Em salas descaracterizadas, sem identificação do programa - numa prisão ninguém diz que é agressor sexual - falam do crime, motivos, vítimas, fantasias, consciência emocional e aprendem a evitar a reincidência.
"As avaliações individuais concluem que o programa provoca mudança nas atitudes, crenças e valores do individuo", garante a DGRSP. Mas uma vez em liberdade, ninguém sabe se se "mantêm menos desajustados face à norma".
Expresso | Sexta, 03 Abril 2015