
Maria José Morgado
Em vez da ladainha desfiada a cada ataque terrorista sobre o manter-o-nosso-estilo-de-vida, mais valia pensar nas mudanças que mais tarde ou mais cedo se vão instalando no direito penal. Ainda temos um direito penal democrático com base na punição do facto e da culpa com a imposição de uma pena através de um processo justo e equitativo. A lei penal contra o terrorismo já aflora exceções. O futuro próximo pode fazer a vontade ao professor Gunter Jakobs, o criador de um direito penal do inimigo.
Para ele, o direito penal deve ser dividido em dois sistemas diferentes: o dos cidadãos e o dos inimigos. O cidadão é punido com uma pena por causa de factos cometidos antes e previstos na lei. O inimigo é punido pelo seu caráter disponível para a transgressão destrutiva da sociedade, pela sua perigosidade intrínseca.
Um cidadão matar a mãe por causa da herança é, neste sistema, considerado um facto transitório, esgotado pela sua consumação e punível com o castigo da pena.
Os factos imputáveis ao inimigo não são factos. Correspondem a uma predisposição de carácter para a prática de criminalidade económica, organizada ou sexual e ações de terrorismo. O terrorismo é o núcleo original inspirador deste modelo. Como tal, o sistema impõe a aplicação de uma pena preventiva em função da perigosidade. Não se pretende corrigir, punir, castigar ou reinserir socialmente. Pura e simplesmente pretende-se, neutralizar o inimigo através da antecipação da sua ação criminosa.
Nesta teoria de medidas de segurança, muito discutida desde o ataque às torres gémeas do WTC e agora muito a propósito do radicalismo destruidor do Daesh, o processo penal não tem garantias legais, não visa a punição de factos passados, mas a aplicação de uma medida de força antecipada para prevenir futuros crimes. Os fundamentos políticos e filosóficos de tal teoria são tão medievais como os terroristas do Daesh ou os ditadores de Estado policiais. A distinção dos seres humanos em bons e maus, indivíduos razoáveis ou ferozes e maus como fundamento de penas antecipadas é uma mudança terrível num mundo terrível.
Podemos divagar acerca do conceito de inimigo enquanto ser social identificável nas ruas, no metro, no cinema ou no restaurante? De repente estamos a reparar com insistência no véu da mulher a comprar uns sapatos, na mochila do árabe no café da esquina, nos jovens que ouvem rap, usam hoodies e vão ao centro comercial e naqueles que não aceitam a nossa cultura ou religião. Vamos continuar todos felizes como dantes?
Um tirano como Hitler não seria "pessoa de direitos". O terrorista também não. E os outros? Aos poucos o direito penal transformar-se-á num sistema autoritário e policial se não percebermos os acontecimentos. Porque o modelo de controlo penal democrático não responde a uma questão grave: o que leva um jovem a radicalizar-se e a matar em massa? As polícias conhecem várias células terroristas mas como saber o momento certo em que alguém vai passar à destruição total? Isso vai mudar muita coisa.
Expresso | Sábado, 09 Abril 2016