
Triplicam os idosos dados por incapazes pela Justiça
Nuno Miguel Maia - nunomm@jn.pt
Há cada vez mais idosos declarados incapazes pela Justiça de gerir a sua pessoa e património. Os processos quase triplicaram em 10 anos, sobretudo por causa do aumento de diagnóstico de doenças mentais.
No ano de 2012 foi ultrapassada a fasquia dos dois mil processos de interdição e inabilitação - 2103 no total - o que representa um aumento de 11,3% em relação a 2011. Mas o mais significativo é que o número tem vindo a aumentar a ritmo idêntico desde 2002, segundo estatísticas da Direção-Geral de Política de Justiça.
Fontes judiciais contactadas pelo JN sublinham que, entre as múltiplas explicações que podem ser dadas para o fenómeno, são de realçar duas: uma subida do registo de casos de doenças degenerativas associadas ao envelhecimento da população e uma maior sensibilidade da Segurança Social, lares de idosos e hospitais quanto às condições de acolhimento e respetivas condições contratuais.
Os mesmos interlocutores descrevem que o Ministério Público recebe cada vez mais comunicações, por parte daquelas instituições, de casos de pessoas de idade que sofrem de problemas de demência ou de doença mental, faltando-lhes discernimento para tomarem decisões sobre a sua vida e negócios. Nestes casos, são instaurados processos com vista à declaração de interdição ou inabilitação, visando nomear um representante legal ou curador para a celebração de contratos com as instituições. "Instituições como lares ou centros de dia não querem correr riscos do ponto de vista legal", explica o advogado Adalberto Costa, autor de um livro sobre processos de interdição e inabilitação, e que também associa o aumento de casos à deteção de doenças e à subida da esperança média de vida.
Também Álvaro de Carvalho, médico psiquiatra e coordenador do Plano Nacional de Saúde Mental, avalia o aumento do número de casos de interdição e inabilitação de pessoas como algo que traduz "maior rigor e um processo de responsabilidade e sensatez". "Não corresponde a uma evolução alarmística", acentua, embora reconhecendo o envelhecimento da população como o pano de fundo.
Ainda no plano da doença mental, verifica-se que, nos últimos anos, hospitais psiquiátricos preocuparam-se em regularizar a situação de pessoas que ali vivem há dezenas de anos às quais falta retaguarda familiar.
O mesmo médico especialista em psiquiatria faz notar que está ainda por aprovar, desde 1998, um decreto-lei relativo à gestão do património dos doentes mentais. Sucessivos governos têm trabalhado no assunto, mas o projeto nunca viu a luz do dia em forma de lei. Até lá, os casos de incapacidade para exercício de direitos sobre a própria pessoa e os seus bens dos pacientes continuam a ser tratados em processos de inabilitação e interdição.
Acolhidos em lares só com contratos
UMA PORTARIA de fevereiro de 2012, emitida pelo Ministério da Segurança Social, passou a exigir a celebração de contratos por escrito para suporte de situações de acolhimento de idosos em lares. O regulamento define, também, os requisitos para a instalação e funcionamento de residências de terceira idade, incluindo o rácio de profissionais de saúde e assistência social necessários por utente.
É quando as famílias deixam de acolher os idosos com doenças degenerativas a nível mental que surge a maior parte dos processos de interdição e inabilitação. As residências de terceira idade passaram a só poder celebrar contratos com os próprios idosos ou com os seus representantes legais, também encarregados de gerir as respetivas reformas e os bens.
Em muitos casos, tem sido a Segurança Social a detetar essa necessidade, comunicando a situação ao Ministério Público que, por sua vez, propõe a ação de interdição ou inabilitação.
[CASOS DE INTERDIÇÃO MEDIÁTICOS]
"Golpes" de filhos a pais são residuais
CASOS DE FILHOS, ou outros familiares, que tentam interditar ou inabilitar os pais com a suposta intenção de anteciparem a herança são "residuais", mas acontecem. Só que ninguém consegue precisar o peso no total de casos. O certo é que alguns tornam-se do domínio público.
Todavia, fontes judiciais contactadas pelo JN registaram situações em que se verifica o inverso. Embora, em regra, não venham a lume, já foram verificados casos de idosos sem hipótese de subsistência autónoma que terão sido abandonados pelos familiares em hospitais, após supostos episódios de "urgência". As situações detetadas terão ocorrido por altura da verão e também no Natal. É nestes contextos que se regista, também, a intervenção dos serviços da Segurança Social.
Álvaro de Carvalho, médico psiquiatra e coordenador do Plano Nacional para a Saúde Mental, admite que podem existir casos de "aproveitamento" de familiares na gestão do património. É estabelecida relação com uma recente a "perda da resposta tradicional" que consistia em, num contexto de família alargada, os "mais novos tomarem conta dos mais velhos". Ainda assim, o especialista confia na forma como está estruturado o processo que conduz à declaração de interdição e inabilitação, classificando-o como "garantístico", até por força da obrigatoriedade de perícias médicas como suporte da decisão judicial.
O EMPRESÁRIO QUE DEU JIPES A EMPREGADOS
Um empresário da Lousã tornou-se conhecido por, em 2000, ter decidido oferecer jipes Honda aos cerca de 150 trabalhadores da sua fábrica de alcatifas. Jorge Carvalho, então com 65 anos e sem descendentes, foi impedido de concretizar a dádiva por familiares que se opunham ao negócio, designadamente .alguns sobrinhos seus herdeiros, que avançaram com uma ação de inabilitação contra o tio no Tribunal Judicial da Lousã.
Em primeira instância, e também na Relação de Coimbra, a ação foi declarada improcedente. Ou seja, foi considerado válido o ato de disposição do património, no valor de 3,5 milhões de euros. Para o desfecho do processo foram decisivos os depoimentos de um padre e antigos trabalhadores, bem como as opiniões de três médicos psiquiatras. O sobrinho herdeiro que liderava a contestação teve a seu favor - mas sem efeito prático - um parecer do Instituto Nacional de Medicina Legal.
MÃE GANHA GUERRA NA JUSTIÇA A FILHOS
Os filhos de um casal proprietário de 553 mil euros depositados em bancos conseguiram levar o pai a assinar, à revelia da mãe e perante uma notária, uma doação de todo o seu dinheiro. Edgard Soares, o pai entretanto falecido, sofrera um AVC, encontrava-se física e mentalmente debilitado há vários anos e veio a ser declarado interdito numa ação proposta pelo Ministério Público. Antes disso, e já depois de se apoderarem do dinheiro, os filhos tinham tentado inabilitar a mãe e até interná-la compulsivamente, com base num parecer de um psiquiatra relativo a uma suposta doença bipolar. Sem sucesso. Rosa Gonçalves Soares, de 80 anos, lutou contra os filhos, submetendose a várias perícias de cinco especialistas que concluíram pela sua sanidade.
O caso ainda faz correr tinta porque a mãe apresentou queixa-crime contra os filhos, Paulo e Carla, que foram pronunciados para julgamento por crime de burla. A decisão da juíza do Tribunal de Instrução Criminal do Porto está com recurso pendente na Relação do Porto, pelo que o caso não tem julgamento mar
cado. INTERDIÇÃO PARA DONA
DO IMPÉRIO L'ORÉAL A nível internacional, um caso muito conhecido é o da dona do império da cosmética, L'Oréal", a terceira maior fortuna de França. Em outubro de 2011, Liliane Bettencourt, então com 88 anos, foi declarada interdita. Por decisão judicial, o património - avaliado em 16 mil milhões de euros - passou a ser gerido por uma filha e netos. Um exame médico atestou que Liliane Bettencourt sofria de doença de Alzheimer "moderadamente gra
ve" e "demência associada". A filha, Françoise, alegou em tribunal que pessoas próximas da mãe estariam a aproveitar-se da incapacidade da sua mãe para se apoderarem da fortuna da família. Referia-se, em especial, a um amigo íntimo, fotógrafo de mais de 60 anos que, em 13 anos, recebeu doações no valor de mil milhões de euros, em imóveis, seguro de vida, quadros de Matisse, Mondrian e Picasso, entre vários outros pre
sentes.
O que é a interdição? É um instituto jurídico, decretado por sentença judicial, aplicável a indivíduos maiores de idade que, devido a anomalia psíquica grave, surdez-mudez ou cegueira, se mostrem incapazes de cuidar de si próprios e do seu património. Só podem exercer os seus direitos por intermédio de representante legal (tutor),
tal como os menores.
O que é a inabilitação? Podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, embora de caráter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a interdição. Isto aplica-se também a sujeitos que, pela prática habitual de atos ruinosos ou despesistas sem justificação, abuso de álcool ou drogas se mostram incapazes de reger o seu património. Só podem dispor dos seus bens com a assistência de um curador, em termos
especificados na sentença.
Que requisitos do processo? Ninguém pode ser declarado interdito ou inabilitado sem que, no processo judicial, seja efetuado exame de perícia médica que determine e demonstre a anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira. A ação pode ser instaurada pelo Ministério Público ou por familiares pre
sumíveis herdeiros..
Os visados têm defesa? Os visados em processo de interdição ou inabilitação podem contestar a ação, através de advogado, defendendo que não se verificam os pressupostos da anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira. Além da perícia médica, se a ação for contestada por escrito, o juiz também deve efetuar um interrogatório oral. Porém, é sabido que, na sua esmagadora maioria, as ações de interdição e inabilitação não são con-
Jornal Notícias | Segunda, 28 Abril 2014